quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Os regimes de Jacques Rancière

No lugar da palavra forma, Rancière usa a palavra “regime” para descrever modalidades de identificação da arte. O primeiro é o regime ético das imagens. Trata-se de saber que o modo de ser das imagens (das figuras enunciadas num texto, num filme, numa pintura) concerne no caráter (ethos) à maneira de ser dos indivíduos e das coletividades. A arte, nesse caso, tem uma finalidade específica de educar e de instruir pelo exemplo do padrão que é demonstrado, figurado.
É possível vislumbrar o teatro político usado por militantes comunistas e anarquistas para fins didáticos de conscientização da classe operária, ou ainda o herói do filme hollywoodiano que não solta à mão do vilão quando este está prestes a despencar de um desfiladeiro. As regras éticas-morais de uma comunidade cristã aparecem expressamente nesta cena, já que segundo a doutrina devemos perdoar àqueles que nos fizeram mal. O que se mostra nesta forma de arte é a “moral da história” que diz claramente em que tipo de caráter o público deve se espelhar.
O segundo regime é o poético ou representativo. Nesta forma de arte, é a noção de representação (mimesis) que organiza as maneiras de fazer, ver e julgar. A arte poética remonta o esquema descrito por Aristóteles como a representação (imitação) do mundo, no qual as regras específicas estão separadas e articuladas entre si. O grau de adequação de tais regras, em consonância com a atenção ao apelo moral da comunidade sensível, para a qual a obra é direcionada, define assim as maneiras de fazer e de apreciar as representações bem feitas. A configuração das regras nesse regime, ou forma de arte, é inevitável e conscientemente uma analogia com

a visão hierárquica global das ocupações políticas e sociais: o primado representativo da ação sobre os caracteres, ou da narração sobre a descrição, a hierarquia dos gêneros segundo a dignidade de seus temas, e o próprio primado da arte da palavra, da palavra em ato, entram em analogia com toda uma visão hierárquica da comunidade. (RANCIÈRE, 2005, p. 32).

Nesse momento, a função política da arte não está necessariamente nas imagens, nem no conteúdo veiculado, muito menos na assimilação deste, mas no formato que expressa alusivamente os lugares determinados para a ocupação de cada um. Isto é, há aquele que tem a palavra e aquele que deve ouvir o primeiro. Rancière contrapõe as duas primeiras formas com o regime estético da arte. Nascido na modernidade, este

não se faz mais por uma distinção no interior das maneiras de fazer, mas pela distinção de um modo de ser sensível próprio aos produtos da arte. A palavra ‘estética’ não remete a uma teoria da sensibilidade, de gosto ou do prazer dos amadores de arte. Remete, propriamente, ao modo de ser específico daquilo que pertence à arte, ao modo de ser de seus objetos. [...] as coisas são identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível. Esse sensível [...] é habitado pela potência do pensamento que se tornou estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber transformado em não-saber, logos idêntico a um pathos, intenção do inintencional etc. (RANCIÈRE, 2005, p. 32).

O regime estético é o paradoxo encarnado na arte, ele desobriga esta a toda e qualquer regra específica e de toda hierarquia de temas, gêneros e artes. É uma forma que atenta contra as outras formas, contra as hierarquias. Na forma estética, a arte deixa de ser imitação, para ser criação, deixa de representar o mundo, para constituir o próprio mundo. Um mundo sem hierarquias, sem regras, sem qualquer preocupação com a constituição do caráter do público através da figuração das imagens.

A partir desta forma pode-se agora apresentar (sem precisar educar ou doutrinar) à política uma via alternativa, que paute não mais a exclusão, o totalitário e o homogêneo, mas a convivência com os diferentes, a coexistência dos desiguais que funcionam sob lógicas de regras dessemelhantes. Com a intenção de tornar a própria política mais própria, mais autônoma, e principalmente mais libertadora.

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