quinta-feira, 22 de março de 2012

Sobre a Morte

A morte é o destino inexorável de todos os seres vivos. Entretanto, só o ser humano tem consciência da própria morte. O homem se pergunta sobre a morte e o que pode ocorrer após o fim do mundo que conhecemos. A morte se representa assim não só como o fim da vida, mas também como limiar de outra realidade. A crença na imortalidade, na vida após a morte, simboliza o medo humano do fim e da distruição e seu anseio à eternidade. 
Se encararmos a morte como um dilaceramento interno, a morte está presente em tudo aquilo que fazemos, pois a morte é uma perda. Ao tomar alguma escolha convivemos com a perda daquilo que não escolhemos. Até mesmo no amor, como o grande poeta já dizia "...a morte, angustia de quem vive [...] fim de quem ama".
A todo momento nos confrontamos com perdas, e precisamos aprender a abandonar o conforto do habito para nos lançarmos as novas possibilidades. Ao se dar conta da morte, o homem é capaz de tranformar sua vida e tornar seu viver autêntico, enfrentando a angústia e assumindo a construção de sua própria vida.



"O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água, bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso. [...] Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. Daí que é preciso nos elevarmos, e não do espaço e da duração, que não poderiamos preencher. Trabalhemos, pois, para bem pensar; eis o princípio da moral" PASCAL

"...ninguém morre antes da hora. O tempo que perdeis não vos pertence mais do que o que precedeu vosso nascimento, e não vos interessa: 'Considerai em verdade que os séculos inumeráveis, já passados, são para vós como se não tivessem sido' [Lucrécio]. Qualquer que seja a duração de vossa vida, ela é completa. Sua utilidade não reside na duração e sim no emprego que lhe dais. Há quem viveu muito e não viveu. Meditai sobre isso enquanto o podeis fazer, pois depende de vós, e não do número de anos, terdes vivido bastante. Imagináveis então nunca chegardes ao ponto para o qual vos dirigíeis? Haverá caminho que não tenha fim?" MONTAIGNE

quarta-feira, 21 de março de 2012

Beleza total e embrutecimento

É bastante evidente que as preocupações estéticas nos dias atuais encontram-se muito em alta. Podemos observar isso desde as coisas mais simples até as mais sofisticadas, que absorvem milhões e milhões de dólares. No mundo de hoje tudo está cercado e permedado pela aparência, e tudo parece ser compreendido e julgado de acordo com isso. Torna-se desnecessário mencionar o quanto isso transforma os objetivos e sentidos da vida humana.
Sendo antes os santos e os intelectuais modelos de vida, nos dias de hoje os modelos estão reduzidos a beleza material, a beleza física e juvenil. O padrão a ser buscado é o corpo atraente e bem delineado, mesmo as custas de exercícios físicos sem fim e toneladas de cirurgias plásticas. Tais buscas intermináveis por uma perfeição estética são indicios de que nossa época coloca a beleza material na frente da organização da vida.
O processo de "estetização" é também estratégicamente econômico: através da associação com a estética, tudo se torna vendável e sedutor. Os produtos são dotados de embalagens atrativas, as vitrines são produzidas para seduzir o olhar e os meios de comunicação de massa hipnotizam com uma overdose de efeitos, que pretende vender até mesmo o que não se pode comprar.
É preciso destacar que esse processo não é superficial ou um simples processo para tornar a vida mais agradável, fácil e os espaços mais atraentes. Pelo contrário, suas consquências atingem o modo como comportamentos e relações são organizados, visto que reforça a mensagem de que tudo está disponível para o prazer individual. Na medida em que tal lógica é adotada, o estético fica reduzido às experiências de prazer imediato. Assim, o indivíduo permanece acostumado com essa lógica, acaba por só aceitar aquilo que agrada imediatamente, tornando-se incapaz de tolerar o que vai de encontro com o que acredita. E principalmente de aceitar como bom e belo aquilo que não traz retorno imediato nas sensações. Uma vez que os estímulos estéticos convidam simplesmente ao agrado e à satisfação imediata, o resultado é a perda de interesse por aquilo que não é suficiente para atender aos desejos narcisistas.


"Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A 'subjetividade' do 'sujeito', e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeitatingir, concentra-se nun esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável." (BAUMAN, Z. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.)

"Agradável é o que apraz aos sentidos na sensação. [...] assim não se poderia pretender deles nenhuma outra avaliação das coisas e de seu valor do que consiste no deleite qu elas prometem." (KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.)

Bibliografia:

SCHILLER, F. A educação estética do homem: numa série de cartas. 4 ed. São Paulo: Iluminuras, 2002.

CASAGRANDA, E. A., TROMBETTA, G. L., PICHLER, N. (org.) Filosofia na praça: conhecimento ética e cultura. Passo fundo: Ed. UPF, 2009.

terça-feira, 20 de março de 2012

Carta sobre a Felicidade de Epicuro

CARTA SOBRE A FELICIDADE (a Menescau)

 
    Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz. Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la.
    Pratica e cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te transmiti, na certeza de que eles constituem os elementos fundamentais para uma vida feliz.
    Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e bem aventurado, como sugere a percepção comum de divindade, não atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo que for capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.
    Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos deles; já a imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa não existe: as pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses. Ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas próprias virtudes, eles só aceitam a convivência com os seus semelhantes e consideram estranho tudo que seja diferente deles
    Acostuma-se à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade.
    Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.
    Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no momento, a maioria das pessoas a foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida.
    O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-viver não é um mal.
    Assim, como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.
    Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente morrer. Mas pior ainda é aquele que diz: bom seria não ter nascido, mas uma vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas do Hades.
    Se ele diz isso com plena convicção, por que não se vai desta vida? Pois é livre para fazê-lo, se for esse realmente seu desejo; mas se o disse por brincadeira, foi um frívolo em falar de coisas que brincadeira não admitem.
    Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem totalmente nosso, nem totalmente não-nosso, para não sermos obrigados a esperá-lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperarmos como se não estivesse por vir jamais.
    Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fundamentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros, ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos da dor e do medo.
    Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da alma se aplaca, e o ser vivo não tendo que ir em busca de algo que lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do corpo, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa necessidade não se faz sentir.
    É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor.
    Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas. Convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.
    Consideramos ainda a auto-suficiência um grande bem; não que devamos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.
    Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita.
    Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não é só conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao homem  os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida: nos períodos em que conseguimos levar uma existência rica, predispõe o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar sem temos as vicissitudes da sorte.
    Quando então dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam as pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é a ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulheres e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio e o supremo bem, razão pela qual ele é mais preciosa do que a própria filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça sem felicidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas
    Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, que tem um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta de modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreende a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremos ou dura pouco, ou só nos causa sofrimentos leves? Que nega o destino, apresentado por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é incoercível, o acaso instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela qual nos acompanham a censura e o louvor?
    Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do destino dos naturalistas; o mito pelo menos nos oferece a esperança do perdão dos deuses através das homenagens que lhes prestamos, ao passo que o destino é uma necessidade inexorável.
    Entendendo que a sorte não é uma divindade, como a maioria das pessoas acredita (pois um deus não faz nada ao acaso), nem algo incerto, o sábio não crê que ela proporcione aos homens nenhum bem ou nenhum mal que sejam fundamentais para uma vida feliz, mas, sim, que dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males. A seu ver, é preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática, é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo, do que chegue a ter êxito um projeto mau.
    Medita, pois, todas estas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente a um mortal o homem  que vive entre bens imortais. 

Epicuro
 
 
Do livro: “Carta sobre Epicuro”, Editora Unesp, ed. bilíngue, grego/português, tradução de Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore, 1997, SP

Fédon de Platão - A Alma e o Corpo

Para entender o que se segue, é preciso ter em mente que os participantes do diálogo, Sócrates e Cebes, já se colocaram de acordo quanto ao seguinte: 1- o homem é composto de corpo e alma – mas não se sabe se a alma é material ou imaterial; 2- o que é composto, como o corpo, se decompõe e morre; já o que é simples e imaterial não se decompõe; 3- existem dois tipos de coisas: as coisas sensíveis, que são visíveis e compostas (e, portanto, sujeitos a decomposição), e as coisas invisíveis, perfeitas e imutáveis (as ideias, Sócrates refere-se à ideia do Bem e de Belo – que são imateriais e eternas). Conhecemos os corpos mediante as sensações de nosso próprio corpo. E as coisas perfeitas, não sensíveis, das quais temos as ideias, como as conhecemos? Porque são invisíveis, não podem ser conhecidas pelo corpo, logo, é a outra parte do homem, a alma, que as conhece. O texto abaixo pretende provar como a alma, que conhece o imortal, é também imortal, pois se assemelha a ele.

Sócrates: Admitamos, portanto, que há duas espécies de seres: uma visível, outra invisível.
Cebes: Admitamos.
Sócrates: Admitamos, ainda, que os invisíveis conservam sempre sua identidade, enquanto que com os visíveis tal não se dá.
Cebes: Admitamos também isso.
Sócrates: Bem, prossigamos. Não é verdade que nós somos constituídos de duas coisas, uma das quais é o corpo e a outra a alma?
Cebes: Nada mais verdadeiro.
Sócrates: Com qual destas duas espécies de seres podemos dizer, pois, que o corpo tem mais semelhança e parentesco?
Cebes: Eis uma coisa que é clara para toda gente: com a espécie visível.
Sócrates: Por outro lado, o que é a alma? Coisa visível ou invisível?
Cebes: Não é visível, ao menos aos homens, Sócrates! (...)
Sócrates: Logo, a alma tem com a espécie invisível mais semelhança do que com o corpo, mas este tem, com a espécie visível, mais semelhança do que a alma?
Cebes: Necessariamente, Sócrates.
Sócrates: Não dizíamos, ainda, há pouco, que a alma utiliza às vezes o corpo para observar alguma coisa por intermédio da vista, ou do ouvido, ou de outro sentido? Assim, o corpo é um instrumento, quando é por intermédio de algum sentido que se faz o exame da coisa. Então a alma, dizíamos, é arrastada pelo corpo na direção daquilo que jamais guarda a mesma forma, ela mesma se torna inconstante, agitada, e titubeia como se estivesse embriagada: isso, por estar em contato com coisas deste gênero.
Cebes: Realmente.
Sócrates: Mas, quando, pelo contrário, ela examina as coisas por si mesma, quando se lança na direção do que é puro, do que sempre existe, do que nunca morre, do que se comporta sempre do mesmo modo (...) – ela cessa de vaguear e, na vizinhança dos seres de que falamos, passa ela também a conservar sua identidade e seu mesmo modo de ser: é que está em contato com coisas daquele gênero. Ora, este estado da alma, não é o que chamamos pensamento?
Cebes: Muito bem dito, Sócrates, e muito verdadeiro. (...)
Sócrates: Tomemos agora outro ponto de vista. Quanto estão juntos a alma e o corpo, a este a natureza consigna servidão e obediência, e à primeira comando e senhorio. Sob este novo aspecto, qual dos dois, no teu modo de pensar, se assemelha ao que é divino, e qual o que se assemelha ao que é mortal? (...)
Cebes: Nada mais claro, Sócrates. A alma, com o divino, o corpo, com o mortal.
Sócrates: Bem, examina agora, Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz efetivamente às seguintes conclusões: a alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissolúvel e possui sempre do mesmo modo a identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que é humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligência, ao que está sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece idêntico. Contra isto, meu caro Cebes, estaremos em condições de opor uma outra concepção, e provar que as coisas não se passam assim?
Cebes: Não, Sócrates.
Sócrates: Que se segue daí? Uma vez que as coisas são assim, não é acaso uma pronta dissolução o que convém ao corpo, e à alma, ao contrário, uma absoluta indissolubilidade, ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime?
(PLATÃO. Fédon 79a-80b. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. Coleção os Pensadores).

As contradições do corpo

As contradições do corpo
Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.
(...)
O seu ardil mais diabólico
está em fazer-se doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão.
(....)
Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.
Meu prazer mais refinado,
não sou eu quem vai senti-lo.
É ele, por mim, rapace,
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.
Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volta a mim, com todo o peso
de sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.

Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo rumo oposto.

Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor,
não sou mais quem dantes era:
com volúpia dirigida,
saio a bailar com meu corpo
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Corpo. Rio de Janeiro, Record, 1984).

quinta-feira, 8 de março de 2012

As sombras da vida - Mauricio de Souza

O Mito da Caverna - Platão

Quantas vezes julgamos as coisas apenas pela imagem que vemos nelas? Muitas vezes nós nos deixamos levar pelas aparências e não procuramos saber qual é o real significado das coisas.O Mito da Caverna narrado por Platão no livro VII do Republica é, talvez, uma das mais poderosas metáforas imaginadas pela filosofia, em qualquer tempo, para descrever a situação geral em que se encontra a humanidade. Para o filósofo, todos nós estamos condenados a ver sombras a nossa frente e tomá-las como verdadeiras. Essa poderosa crítica à condição dos homens, escrita há quase 2500 anos atrás, inspirou e ainda inspira inúmeras reflexões pelos tempos a fora.

O Mito da Caverna

"SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem. 
GLAUCO - Imagino tudo isso. 
SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam em silêncio. 
GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos! 
SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira?
GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça durante toda a vida. 
SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras? 
GLAUCO - Não. 
SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes que elas representam? 
GLAUCO - Sem dúvida. 
SÓRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos?  
GLAUCO - Claro que sim. 
SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilaram.
GLAUCO - Necessariamente. 
SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados?  
GLAUCO - Sem dúvida nenhuma. 
SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados? 
GLAUCO - Certamente. 
SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais? 
GLAUCO - A princípio nada veria. 
SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia.
GLAUCO - Não há dúvida.  
SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é. 
GLAUCO - Fora de dúvida. 
SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna. 
GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões. 
SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram? 
GLAUCO - Evidentemente. 
SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia? 
GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga. 
SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas? 
GLAUCO - Certamente. 
SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa -- porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade -- tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto? 
GLAUCO - Por certo que o fariam. 
SÓCRATES - Pois agora, meu caro Glauco, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos."

segunda-feira, 5 de março de 2012

O Amor - O Mito de Eros e Psiqué



Eros é uma das “Divindades Primordiais”, aquelas que pertencem à “pré-história” da Mitologia grega.  Na Teogonia de Hesíodo, Eros, o Amor nasce como uma força espiritual da natureza que preside a ordem do Universo nascente. Eros teria nascido do Ovo primordial (o Caos), engendrado pela Noite, cujas metades se separaram, dando origem à Terra e ao Céu. Ele é o princípio da atração universal, que leva as coisas a se juntarem, criando a vida.  Eros é a força que assegura a coesão interna do Cosmos e a continuidade da vida na terra.  Para Platão, ele seria um dáimon, uma força espiritual intermediária entre a divindade e a humanidade. Posteriormente, no cilco dos mitos olimpianos, Eros é filho de Afrodite e Ares, representado por uma criança travessa que flecha os corações para torná-los apaixonados.
O Eros verdadeiro é o deus do amor no seu sentido integral, que engloba corpo e alma. O homem e a mulher se amam (ou deveriam se amar!) sempre e em todos os lugares por uma comunhão de sentimentos que transcende o aspecto corporal. O erotismo, que verdadeiramente funciona e que faz perdurar a atração recíproca por longo tempo, está no olhar apaixonado, na admiração que o amante sente pelas qualidades físicas e espirituais que consegue enxergar na pessoa amada. O erotismo, que realmente e de uma forma mais duradoura estimula o desejo, se encontra na poesia lírica, na pintura, na dança, nos filmes sentimentais, na arte em geral, pois supera o nível do real e penetra no mundo da fantasia, do sonho, do vago sentimento do inacessível. O erotismo está mais no sugerir do que no mostrar totalmente, no claro-escuro, na promessa do idílio, no mistério a ser desvendado, na repetição do ato do amor como se fosse sempre pela primeira vez.  Como diz a poeta Adélia Prado, “erótica é a alma”!  Só que conhecer o espírito de alguém é bem mais difícil do que lhe conhecer o corpo.  Manuel Bandeira nos oferece uma reflexão interessante a respeito:

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
  Porque corpos se entendem; as almas, nem sempre”.
E, sobre a renovação do desejo erótico, esta bela imagem do poeta Mário Quintana: “amar é mudar a alma de casa”. Enfim o erotismo, entendido como prática do amor num sentido bem geral, é onipresente a qualquer atividade humana bem sucedida. A escritora Lygia Fagundes Telles afirma acertadamente: “Vocação é ter a felicidade de ter como ofício a paixão”.  Mas é a escritora existencialista francesa, Simone de Beauvoir, companheira do grande poeta-filósofo Jean-Paul Sartre, quem melhor define a essência da relação carnal: “O erotismo implica uma reivindicação do instante contra o tempo, do indivíduo contra a sociedade”.


Eros e Psiqué


      Era uma vez um rei que tinha três filhas. Duas eram lindas, mais a mais nova era muito, muito mais bonita. Dizia-se até que Afrodite - a deusa da beleza - não era tão bonita quanto Psiquê (esse era seu nome). Os templos de Afrodite andavam vazios porque as pessoas, principalmente os homens, passaram a cultuar aquela princesa maravilhosa. Afrodite ficou com ciúme e pediu para seu filho, Eros, preparar uma vingança. Ela queria que Psiqué se apaixonasse por um monstro horrível. Só que Eros também acabou sendo atingido pelos encantos da menina. Ele ficou tão maravilhado ao ver Psiquê que não conseguiu cumprir a ordem da mãe. Parece que foi flechado por uma de suas flechas.
      O estranho é que todos aqueles homens que ficavam enfeitiçados com sua beleza não se aproximavam e nem tentavam namorá-la. As duas irmãs, que perto da caçula não tinham a menor graça, logo arranjaram pretendentes e cada uma se casou com um rei. A família ficou preocupada com a solidão de Psiqué. Então, um dia, o pai resolveu perguntar ao oráculo de Apolo o que deveria fazer para a menina arranjar um marido. O que ele não sabia é que Eros já havia pedido a Apolo para ajudá-lo a cumprir aos planos de sua mãe. A resposta que o rei levou para casa o deixou muito mais preocupado do que já estava: o deus falou que Psiqué deveria ser vestida de luto e abandonada no alto de uma montanha, onde um monstro iria buscá-la para fazer dela sua esposa.
      Embora muito triste, a família cumpriu essas determinações e Psiqué foi deixada na montanha. Sozinha e desesperada, ela começou a chorar. Mas, de repente, surgiu uma brisa suave que a levou flutuando até um vale cheio de flores, onde havia um palácio maravilhoso, com pilares de ouro, paredes de prata e chão de pedras preciosas. Ao passar pela porta ouviu vozes que diziam assim: "Entre, tome um banho e descanse. Daqui a pouco será servido o jantar. Essa casa é sua e nós seremos seus servos. Faremos tudo o que a senhora desejar". Ela ficou surpresa. Esperava algo terrível, um destino pior que a morte e agora era dona de um palácio encantado. Só uma coisa a incomodava: ela estava completamente sozinha. Aquelas vozes eram só vozes, vinham do ar. A solidão terminou à noite, na escuridão, quando o marido chegou. E a presença dele era tão deliciosa que Psiqué, embora não o visse, tinha certeza de que não se tratava de nenhum monstro horroroso.
      A partir de então sua vida ficou assim: luxo, solidão e vozes que faziam suas vontades durante o dia e, à noite, amor. Acontece que a proibição de ver o rosto do marido a intrigava. E a inquietação aumentou mais ainda quando o misterioso companheiro avisou que ela não deveria encontrar sua família nunca mais. Caso contrário, coisas terríveis iam começar a acontecer. Ela não se conformou com isso e, na noite seguinte, implorou a permissão para ver pelo menos as irmãs. Contrariado, mas com pena da esposa, ele acabou concordando. Assim, durante o dia, quando ele estava longe, as irmãs foram trazidas da montanha pela brisa e comeram um banquete no palácio.
      Só que o marido estava certo, a alegria que as duas sentiram pelo reencontro logo se transformou em inveja e elas voltaram para casa pensando em um jeito de acabar com a sorte da irmã. Nessa mesma noite, no palácio, aconteceu uma discussão. O marido pediu para Psiqué não receber mais a visita das irmãs e ela, que não tinha percebido seus olhares maldosos, se rebelou, já estava proibida de ver o rosto dele e agora ele queria impedi-la de ver até mesmo as irmãs? Novamente, ele acabou cedendo e no dia seguinte as pérfidas foram convidadas para ir ao palácio de novo. Mas dessa vez elas apareceram com um plano já arquitetado. Aconselharam Psiqué a assassinar o marido. À noite ela teria que esconder uma faca e uma lamparina de óleo ao lado da cama para matá-lo durante o sono.
      Psiquê caiu na armadilha. Mas, quando acendeu a lamparina, viu que estava ao lado do próprio Eros, o deus do amor, a figura masculina mais bonita que havia existido. Ela estremeceu, a faca escorregou da sua mão, a lamparina entornou e uma gota de óleo fervente caiu no ombro dele, que despertou, sentiu-se traído, virou as costas, e foi embora. Disse: "Não há amor onde não há confiança".
      Psiqué ficou desesperada e resolveu empregar todas as suas forças para recuperar o amor de Eros, que, a essa altura, estava na casa da mãe se recuperando do ferimento no ombro. Ela passava o tempo todo pedindo aos deuses para acalmar a fúria de Afrodite, sem obter resultado. Resolveu então ir se oferecer à sogra como serva, dizendo que faria qualquer coisa por Eros. Ao ouvir isso, Afrodite gargalhou e respondeu que, para recuperar o amor dele, ela teria que realizar quatro tarefas. Em seguida, pegou uma grande quantidade de trigo, milho, papoula e muitos outros grãos e misturou. Até o fim do dia, Psiqué teria que separar todos os grãos. Era impossível e ela já estava convencida de seu fracasso quando centenas de formigas resolveram ajudá-la e fizeram todo o trabalho.
      Surpresa e nervosa por ver aquela tarefa cumprida, a deusa passou a segunda tarefa, ainda mais difícil: queria que Psiqué trouxesse um pouco de lã de ouro de umas ovelhas ferozes. Percebendo que ia ser trucidada, ela já estava pensando em se afogar no rio quando foi aconselhada por um caniço (uma planta parecida com um bambu) a esperar o sol se pôr e as ovelhas partirem para recolher a lã que ficasse presa nos arbustos. Deu certo, mas no dia seguinte uma nova missão a esperava.
      Agora Psiqué teria que recolher em um jarro de cristal um pouco da água negra que saía de uma nascente que ficava no alto de uns penhascos. Com o jarro na mão, ela foi caminhando em direção aos rochedos, mas logo se deu conta de que escalar aquilo seria o seu fim. Mais uma vez, conseguiu uma ajuda inesperada: uma águia apareceu, tirou o jarro de suas mãos e logo voltou com ele bem cheio de água negra.
      Acontece que a pior tarefa ainda estava por vir. Afrodite dessa vez pediu a Psiqué para ir até o Reino dos Mortos (o País de Hades, também chamado de Campos Elísios ou Érebo), pedisse à sua rainha, Perséfone, um pouco de sua beleza. A deusa estava certa de que Psiqué não voltaria viva. Mais uma vez, Afrodite se engana. Psiqué convece Perséfone a encher uma caixa com a sua beleza para Afrodite. Tudo já estava próximo do fim quando veio a tentação de pegar um pouco da beleza imortal para tornar-se mais encantadora para Eros. Ela abriu a caixa e dalí saiu um sono profundo, que em poucos segundos a fez tombar adormecida.
      A história acabaria assim se o amor não fosse correspondido. Por sorte Eros também estava apaixonado e desesperado. Ele tinha ido pedir a Zeus, o deus dos deuses, que fizesse sua mãe parar com aquilo para que eles pudessem ficar juntos. Zeus então reuniu a assembléia dos deuses (que incluía Afrodite) e anunciou que Eros e Psiqué iriam se casar no Olimpo e ela se tornaria uma deusa. Afrodite aceitou porque, percebendo que a nora iria viver no céu, ocupada com o marido e os filhos, os homens voltariam a cultuá-la. Eros e Psiquê tiveram uma filha chamada Volúpia e, é claro, viveram felizes para sempre.