terça-feira, 28 de agosto de 2012

Eterno Retorno


Eterno retorno  Ewige Wiederkunft é um conceito filosófico formulado por Friedrich Nietzsche
Podemos observar nas palavras do filósofo em A Gaia Ciência
"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?"


"Cientificismo" por Millôr Fernandes






















FERNANDES, M. Millôr. Veja, São Paulo, n. 48, p.34, dez. 2007.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Baudelaire e a modernidade


Charles-Pierre Baudelaire (Paris, 9 de abril de 1821 — 31 de agosto de 1867) foi um grande poeta e teórico da arte francesa. É certamente considerado um dos precursores do simbolismo, mas é reconhecido realmente como o fundador da tradição moderna em poesia. Como sabemos, a importância de Baudelaire na tradição literária do ocidente consiste não só na instauração da Modernidade, mas também em seus conceitos filosóficos e literários. Que se caracterizam pela dialética de razão e paixão no nível da estrutura e do sentido da construção poética.
Pode-se indicar a partir daí, que a busca pela harmonia dessas duas potências extremas, consideradas estanques durante toda a tradição do pensamento ocidental, a saber, razão e paixão, é a busca pelo equilíbrio da vida em si mesma. Afinal, não é possível promover a separação dos contrários em tudo o que se manifesta no fazer humano e na vida cósmica em geral. Muito pelo contrário, a vida se dá através dessa tensão, desse devir [1], dessas essências opostas que vão de encontro uma da outra, daí a necessidade de vir a ser do homem.
Baudelaire busca o equilíbrio, a junção, uma espécie de livre jogo [2] entre as duas “pulsões” que pressionam a nossa existência. Ele aplica uma harmonização de contrários em seu fazer poético, colocando no mesmo patamar razão e desejo. Podendo assim nos mostrar através de sua arte o que se fazia presente nos principais conflitos de sua vida. Tais conflitos eram tratados com muita sinceridade pelo poeta, demonstravam a sua preocupação com a realidade que estava vivendo, um cotidiano que contrastava com o seu interior.
O poeta confrontou assim, sua imagem de artista a uma imagem de herói e desde o início uma intercede pela outra, nos diz Benjamim [3]. Baudelaire era cercado por uma realidade de mudanças tanto na estrutura da sociedade, como nas necessidades do sujeito. Na da vida urbana, com a instauração de uma nova ordem burguesa e capitalista, que acabaram por chocar o sujeito desse tempo. E, enquanto nova ordem era constituída, evidenciava-se no indivíduo uma nova base de estruturas modernas.
A construção dessa nova realidade, que além de expor os contrastes sociais, também contrastava o indivíduo com a multidão, levou o pensamento a outro lugar comum. Pois ao chegar à rua o sujeito urbano perde completamente sua individualidade e passa a ser simplesmente mais um na multidão. E o poeta acrescenta na passagem seguinte uma série de outros detalhes que se passavam.


Não importa o partido a que se pertença é impossível não ficar emocionado com o espetáculo dessa multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaiade, pelo mercúrio e todos os venenos usados na fabricação de obras-primas... Essa multidão de consome pelas maravilhas, as quais, não obstante, a Terra lhe deve. Sente borbulhar em suas veias de tristeza à luz do Sol e às sombras dos grandes parques. (BENJAMIN, p. 73, 1989)


Após essa passagem o autor assim coloca: “A Modernidade”. Então presenciamos neste momento a modernização do comércio que traz para o parisiense mais uma inovação, com galerias e vitrines iluminadas que ao mesmo tempo expunham a mercadoria e fascinavam aquele que vagava pelas ruas. E também havia o incrível espaço da reflexão que além de expor o sentimento de uma era, remontava a antiguidade, exibindo mais uma vez o frescor do moderno. O que traz à cena o flâneur, muitas vezes retratado nas obras de Baudelaire. Este errante que se entrega a compulsão de sujeito urbano, que passeia prazerosamente sem destino pelas galerias e ruas, mas ao mesmo tempo não perde sua natureza inumana.
           
Assim ele vai, corre, procura. O que? Certamente esse homem, tal como o descrevi, esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto de homens, tem objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da circunstância. Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade; pois não me ocorre melhor palavra para exprimir a ideia em questão. Trata-se, para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poético e de histórico, e de extrair o eterno do transitório. (BAUDELAIRE, 1996, p. 25)

Em meio toda essa experiência nova, onde o sujeito se defrontava com a multidão e com a velocidade de mudanças na sociedade, Baudelaire viu-se na responsabilidade de refletir sobre os acontecimentos de seu mundo. Ao trabalhar as transformações o autor traz à tona contrastes sociais outrora camuflados, expondo a dualidade presente na arte e na vida.
O poeta afirma que o homem do mundo, ao contrário de estar submetido a uma área específica, passa a apreciar assuntos do mundo inteiro. E esse mesmo homem retira da moda atual e de seu momento histórico o que tem de poético, portanto, retira do transitório o que tem de eterno para alcançar a essência do belo. “A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.” (BAUDELAIRE, 1996, p. 26)


[1] Devir é um conceito filosófico que diz respeito à mudança constante, a inconstância.
[2] Essa expressão é usada pelo filósofo Immanuel Kant, na Crítica da Faculdade do Juízo, quando propõe que o sentimento que envolve a beleza provoca um acordo entre as faculdades cognitivas do sujeito, a saber, imaginação e entendimento. O livre jogo é entendido por Kant como a harmonia presente entre as faculdades diante da beleza. Quando algum objeto é chamado belo, há um acordo entre as duas faculdades. O entendimento não determina nenhum conceito, pois afinal não é um juízo de conhecimento, e a imaginação vai além de um papel pré-determinado pelo entendimento de simplesmente apresentar uma imagem para algum conceito. Sendo assim, a imaginação é livre e o entendimento indeterminado, analogamente é o que Baudelaire faz em sua poesia, harmonizando os conflitos, as paixões e as vontades, com a razão, com a ordem e a forma. A forma de sua poesia é reta, racional, mas o conteúdo das mesmas se referem às vontades, aos desejos.
[3] Walter Benjamin foi um ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo alemão. E tem parte da sua obra dedicada a Charles Baudelaire, o principal livro chama-se Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, e é à luz das reflexões de Benjamin acerca de Baudelaire que vamos analisar a arte literária do poeta.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

O Nascimento da Tragédia - Nietzsche


O Nascimento da Tragédia (Die Geburt der Tragödie, 1972)

Nietzsche recuperou dos gregos a oposição entre Apolo e Dioniso: pai das artes plásticas o primeiro, da arte musical o segundo. Estas divindades personificavam dois instintos que, antes de se exprimirem na arte, se manifestavam naturalmente no homem, um no sonho, outro na embriaguez. É o instinto apolíneo que cria o mundo de sonho e de beleza dos deuses olímpicos. Este mundo não deve, no entanto, levar a acreditar em uma pretensa serenidade grega. Os gregos tinham, pelo contrário, uma perspectiva profundamente pessimista da existência, revelada pelos poemas pré-homéricos. Só puderam viver colocando diante deles um ecrã1 de imagens com a existência triunfante dos olímpicos. Esta criação pode ser interpretada de um ponto de vista metafísico. O Ser é o “original”, sofrimento e contradição. Ele tenta libertar-se do seu sofrimento pelo êxtase de uma visão, que constitui a “aparência”. A aparência é antes de mais o mundo empírico, mas depois, criando-se uma aparência de uma aparência, o sonho surge para mitigar o sofrimento original.
A tragédia grega representa a união de duas forças, a apolínea e a dionisíaca. Na sua origem encontramos o coro dos sátiros, cantando um ditirambo2 em honra de Dioniso. Mergulhados na embriaguez dionisíaca, os coristas sentiam-se sátiros e diziam os sofrimentos e glórias do deus. Ao mesmo tempo, sob o efeito da força apolínea, viam este deus aparecer. Na tragédia clássica, a de Ésquilo e de Sófocles, descobre-se sob o véu da beleza apolínea um fundo de pensamento dionisíaco: os seus heróis são somente máscaras do deus. Mas a tragédia morre quando Eurípides, sob a influência de Sócrates, introduz nela um racionalismo otimista estranho ao seu espírito.
Nietzsche trata do mito trágico. A música engendra imagens que são exemplos particulares do que exprime em geral. Ela engendrou na Grécia mitos trágicos como imagens simbólicas da sabedoria dionisíaca que exprimia. É esta sabedoria que no ensino o mito: ele mostra-nos os sofrimentos e a morte do herói, mas através desta destruição de um indivíduo, faz-nos sentir a vida que é indestrutível. E é por isso que sentimos felicidade nesse espetáculo. A nossa cultura racionalista, assim o é desde Sócrates, duvida agora dos seus fundamentos e sofre de esterilidade. Mas o espírito dionisíaco sobreviveu na música alemã: ele manifesta-se no drama wagneriano e pode inspirar uma nova cultura.


1 Uma tela ou ecrã (que registra ainda a grafia écran) é uma superfície esticada, feita com tecido ou vidro, utilizada para cobrir um vão ou projetar uma imagem sem impedir a passagem de luz.
2 Nas origens do teatro grego, o ditirambo (do grego dithýrambos, pelo latim dithyrambu) era um canto coral de caráter apaixonado (alegre e sombrio), constituído de uma parte narrativa, recitada pelo cantor principal, ou corifeu, e de outra propriamente coral, executada por personagens vestidos de faunos e sátiros, considerados companheiros do deus Dioniso, em honra do qual se prestava essa homenagem ritualística.