quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Mito e Literatura

A consciência mítica primitiva, que garantia a coerência rígida das primeiras comunidades humanas, desapareceu em face do progresso da crítica racional e das técnicas sustentadas pela ciência. Mas esta primeira consciência extensiva e unanimista foi substituída por uma consciência mítica segunda, mais secreta, e como que nos bastidores do pensamento racional. As intenções míticas, aqui, mais livres, supõem uma adesão individual e como que uma triagem entre as possibilidades oferecidas aos desejos de cada um. Religião, litereatura, política, propõem, em ordem dispersa, fórmulas míticas nas quais cada homem, chamado assim a uma espécie de exame de consciência, é convidado a se reconhecer.
O papel crescente da literatura e sua progressiva difusão, deve ser relacionado com o recuo das crenças religiosas. A experiência mítica teve de se fixar em meios novos de expressão. O aspecto formal da literatura importa menos do que sua significação material. O estilo valoriza os elementos mais arcaicos do ser no mundo, cuja permanência justifica o sucesso do poema e do drama, assim como motiva a expansão das obras-primas da literatura universal. O prodigioso desenvolvimento do romance, que é, sem dúvida, o aspecto mais significativo da vida literária comtemporânea, deve-se sem dúvida ao fato de que o romance põe o mito ao alcance de todos sob o revestimento de uma história fácil de seguir. Eliade assinalou a sobrevivência dos arquétipos míticos como claves da literatura. "As provações, os sofrimentos, as peregrinações do candidato à iniciação, [...] por exemplo, sobrevivem no relato dos sofrimentos e dos obstáculos que o herói épico ou dramático deve superar (Ulisses, Enéas, Parsifal, este ou aquele personagem de Shakespeare, Fausto e outros), antes de atingir seus fins. [...]". O próprio romance policial, que constitui um dos aspectos mais singulares do folclore comtenporâneo, prolonga, sob as aparências do duelo entre o detetive e o criminoso, a inspiração dos romances de capa e espada, que foi mais remotamente aquela dos romances de cavalaria, e remonta a muito mais atrás ainda na noite dos tempos, isto é, até as raízes do inconsciente.
GUSDORF, Georges. Mito e metafísica. São Paulo, Convívio, 1979.

2 comentários:

  1. pergunta
    apesar estarmos distantes dos mitos de comunidades primitivas, como gusdorf nos revela a presenca real deles

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  2. pergunta
    apesar estarmos distantes dos mitos de comunidades primitivas, como gusdorf nos revela a presenca real deles

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