Com seu livro, satírico,
ultra-violento e pornográfico “Laranja Mecânica” de 1962, Anthony Burgess proporcionou
a Stanley Kubrick mais uma de suas obras-primas. Laranja Mecânica chegou aos cinemas em 1971, narrando às desventuras do carismático sociopata, Alex (Malcolm McDowell) e seus droogs (Pete, Georgie e Dim) em uma Grã-Bretanha
distópica e brutal.
Na época do lançamento a obra assustou, chegou a ser proibida,
e deixou de ser exibida em muitos países, mas ao mesmo tempo foi elogiada pelos
críticos. Kubrick sabia exatamente o que estava fazendo. A questão da violência
naturalizada no filme é posta em questão tanto de forma social quanto
psicológica.
Somos transportados para a mente do sujeito mais irado com
tudo, completamente cínico, e dono de suas próprias razões. Ele espanca, estupra e está para além de
qualquer regra social. Alex é um ser amoral, que desconhece as mínimas e
convenientes regras da sociedade. Alex é um jovem infrator que sai com sua
gangue nas noites para aterrorizar mendigos, estuprar mulheres casadas e
espancar seus maridos. Nos intervalos o grupo descansa em um bar, no qual tomam
leite (ultraviolencemilk) emergindo dos seios de uma boneca metamórfica.
No entanto, em uma de suas aventuras, Alex é traído por seus
companheiros da conceitual ultraviolência, e é pego pela polícia. Na prisão,
converte-se à religião, e transforma-se numa espécie de aprendiz dos bons e
respeitosos costumes, pela influência do padre/pastor/bispo do local.
Assim, ele se vê com a oportunidade de participar de um teste,
uma cura, que traz de volta os conceitos morais e a saúde mental dos pacientes
infectados pela doença social da revolta e da "consciência
defeituosa" (o Método
Ludovico). Alex se entrega a chance sair daquela teia de repressão
psicológica. No entanto, o tratamento que ele passa é bem mais violento que
qualquer um de seus atos cometidos anteriormente. As sequências do "cinema
moral", a camisa de forças, os grampos que mantinham os olhos “glases” de
Alex abertos todo o tempo, para não evitar que visse nenhuma das cenas. São uma
comprovação da brutalidade e de uma tentativa de curar violência com mais
violência.
A proposta de evidenciar essa cura, no "teatro de
tentações", é extraordinariamente eficiente no que concerne identificar,
através dos significados da pessoa doente, a devolução, ou reestruturação dos
seus conceitos como pessoa pronta a residir no meio social. “O que importa é
que funciona!”
Os diálogos construídos, a destreza dos ângulos (belamente
fotografados), os cortes, a trilha e a magnífica interpretação de McDowell são
primordiais para sustentar a proposta do filme. Laranja Mecânica como nenhum
outro filme, delata a contribuição do homem como o simples e corrigível culpado
de seus atos. Declarar a cura desses indivíduos por um tratamento tão doloroso
quanto, é bem mais amargurante do que aceitar as disposições que assolam a
sociedade de crime e porventura o castigo de suas colaborações em dignificar
essas relações de culpabilidade.
O filme é tão impactante, pois modifica nossas visões morais.
Kubrick é capaz de transformar uma cena de brutal violência, deixando-a
encantadora e bela. Ao utilizar Beethoven na trilha sonora e abusar de cores e
ângulos únicos, o diretor nos leva para um mundo que está fora de nossa
realidade. Provocando uma oscilação de sentimentos inigualáveis, nos fazendo
pensar sobre as falidas instituições da família, da política, da ciência, da
religião e do próprio homem corroborado pelos sentimentos e prazeres
passageiros. O mesmo prazer que leva à desconstrução de seu próprio Eu.
Agora algumas curiosidades sobre o filme:
O Korova Milk Bar
foi o único set construído especialmente para o filme. Foi batizado pela
palavra russa para vaca e suas esculturas foram baseadas no trabalho do
escultor Allen Jones (uma as pinturas da parede apareceria
novamente em O Iluminado, 1980). Stanley
Kubrick fez com que os dispensers de
leite fossem esvaziados, lavados e reabastecidos a cada hora, pois o leite
coalhava sob as luzes do estúdio.
Alex cantar
"Singing in the Rain" enquanto ataca o escritor e sua esposa não
estava no roteiro. Kubrick passou quatro dias experimentando com a cena, pois a
julgava muito convencional. Eventualmente, pediu a Malcolm McDowell se ele
poderia dançar. Eles fizeram a cena novamente, desta vez com McDowell cantando
e dançando a única música que ele conseguira lembrar na hora. Kubrick ficou tão
impressionado que logo comprou os direitos do tema de Cantando na Chuva por
US$ 10 mil. Quando McDowell encontrou Gene Kelly, anos
depois, em uma festa, o ator veterano se retirou indignado. Kelly teria ficado
profundamente decepcionado com a forma como sua versão de "Singing in the
Rain" foi usada em Laranja Mecânica.
Kubrick pediu ao Pink Floyd para usar "Atom Heart
Mother", faixa que abre o álbum hômonimo da banda, na trilha sonora.
Porém, como o diretor queria uso ilimitado da composição, a banda rejeitou a
proposta. Quando Alex visita a loja de discos, é possível ver nas prateleiras a
trilha de 2001 - Uma Odisseia no Espaço e Atom Heart Mother. Outros discos visíveis na loja são: Lorca, de Tim Buckley, As Your Mind Flies,
do Rare Bird, Deja Vu, de Crosby Stills Nash & Young, The Transfiguration Of Blind Joe Death, de John Fahey, Magical Mystery Tour,
dos Beatles, After The Goldrush,
de Neil Young, The Chicago Transit Authority,
do Chicago e In The Summertime,
do Mungo Jerry.
Apesar de
interpretar um adolescente de 15 anos (17 na última parte) Malcolm McDowell
tinha 27 anos na época das filmagens. A língua falada por Alex e seus droogs é
o Nadsat, uma mistura de inglês, russo e gírias londrinas.
O médico que acompanha Alex enquanto
ele é forçado a assistir filmes violentos é um médico de verdade, presente para
assegurar que os olhos de McDowell não secassem. Seus olhos foram anestesiados
para que as cenas de tortura fossem filmadas sem tanto desconforto. Ainda sim,
suas córneas foram arranhadas pelos grampos de metal.
A acelerada cena de sexo foi filmada
em um único take de 28 minutos. Já a cena final do filme foi concluída depois
de 74 tentativas.
Na cena em que Alex fala com o padre
sobre a terapia Ludovico, é possível ver os prisioneiros marchando em círculo
no pátio. A cena recria uma pintura de Vincent van Gogh, Prisioneiros se
Exercitando (1890).
Enquanto gravava a cena no quarto de Alex,
Kubrick achando que faltava um elemento para deixar a cena mais complexa descobriu
que o ator Malcolm McDowell tinha medo de cobra. O diretor não pensou duas
vezes, e colocou uma cobra como animal de estimação de Alex. A cena ficou mais
tensa e vemos também outros elementos articulados à cobra (Basil), a imagem de
Jesus dançando ao som de Beethoven. Logo abaixo da imagem da cobra, fazendo uma
referencia ao pecado original.